INFORTÚNIO
MATERNO
Em pleno hospital da Espiritualidade,
pobre criatura estendeu-nos o olhar suplicante e rogou:
- O senhor consegue escrever para a
Terra?
- Quando mo permitem - repliquei entre
pesaroso e assombrado.
Quem era aquela mulher que me
interpelava desse modo?
A fisionomia escaveirada exibia
recordações da morte. A face inundada de pranto tinha esgares de angústia e as
mãos esqueléticas e entrefechadas davam a ideia de garras em forma de conchas.
Dante não conseguiria trazer do
Inferno imagem mais desolada de sofrimento e terror.
- Escreva, escreva! - repetia
chorando.
- Mas escrever a quem?
- Às mulheres... - clamou a infeliz. -
Rogue-lhes não fujam da maternidade nobre e digna... peço não façam do
casamento uma estação de egoísmo e ociosidade...
Os soluços a lhe rebentarem do peito
induziam-nos a doloroso constrangimento.
E a infeliz contou em lágrimas:
- Estive na Terra, durante quase meio
século... Tomei corpo entre os homens, após entender-me com um amigo dileto que
seguiu, antes de mim, no rumo da arena carnal, onde me recebeu nos braços de
esposo devotado e fiel. Com assentimento dos instrutores, cuja bondade nos
obtivera o retorno à escola física, comprometemo-nos a recolher oito filhinhos,
oito corações de nosso próprio passado espiritual, que por nossa culpa direta e
indireta jaziam nas fumas da crueldade e da indisciplina... Cabia-nos
acolhê-los carinhosamente, renovando-lhes o espírito, ao hálito de nosso
amor... Suportar-lhes-íamos as falhas renascentes, corrigindo-as pouco a pouco,
ao preço de nossos exemplos de bondade e renúncia... Nós mesmos solicitáramos
semelhante serviço... Para alcançar mais altos níveis de evolução, suplicamos a
prova reparadora... Saberíamos morrer gradativamente no sacrifício pessoal,
para que os associados de nossos erros diante da Lei Divina recuperassem a
noção da dignidade.
A triste narradora fez longa pausa que
não ousamos interromper e continuou:
- Entretanto, casando-me com Cláudio,
o amigo a que me reportei, fui mãe de um filhinho, cujo nascimento não pude
evitar... Paulo, o nosso primogênito, era uma pérola tenra em nossas mãos...
Despertava em meu ser comoções que o verbo humano não consegue reproduzir...
Ainda assim, acovardada perante a luta, por mais me advertisse o esposo
abençoado, transmitindo avisos e apelos da Vida Superior, detestei a
maternidade, asilando-me no prazer... Cláudio era compelido a gastar largas
somas para satisfazer-me nos caprichos da moda... Mas a frivolidade social não
era o meu crime. .. Nas reuniões mundanas mais aparentemente vazias pode a alma
aprender muito quando resolve servir ao bem. .. Cristalizada, contudo, na
preguiça, qual flor inútil a viver no luxo dourado, por doze vezes pratiquei o
aborto confesso... Surda aos ditames da consciência que me ordenava o
apostolado maternal, expulsei de mim os antigos laços que em outro tempo se
acumpliciavam comigo na delinquência, assassinando as horas de trabalho que o
Senhor me havia facultado no campo feminino... E, após vinte anos de teimosia
delituosa, ante o auxílio constante que me era conferido pelo Amparo Celestial,
nossos Benfeitores permitiram, para minha edificação, fosse eu entregue aos
resultados de minha própria escolha... Enlaçada magneticamente àqueles que a
Divina Bondade me restituiria por filhos ao coração e aos quais recusei guarida
em minha ternura, fui obrigada a tolerar-lhes o assalto invisível, de vez que,
seis deles, extremamente revoltados contra a minha ingratidão, converteram-se
em perseguidores de minha felicidade doméstica... Fatigado de minhas
exigências, meu esposo refugiou-se no vício, terminando a existência num
suicídio espetacular... Meu filho, ainda jovem, sob a pressão dos perseguidores
ocultos que formei para a nossa casa, caiu nas sombras da alienação mental, desencarnando
em tormento indescritível num desastre da via pública, e eu... pobre de mim,
abordando a madureza, conheci a dolorosa tumoração das próprias entranhas... A
veste carnal, como que horrorizada de minha presença, expulsou-me para os
domínios da morte, onde me arrastei largo tempo, com todos os meus débitos
terrivelmente agravados, sob a flagelação e o achincalhe daqueles a quem podia
ter renovado com o bálsamo de meu leite e com a bênção de minha dor...
A desditosa enferma enxugou as
lágrimas com que nos acordava para violenta emoção e terminou:
- Fale de minha experiência às nossas
irmãs casadas e robustas que dispõem de saúde para o doce e santo sacrifício de
mãe! Ajude-as a pensar... Que não transformem o matrimônio na estufa de flores
inebriantes e improdutivas, cujo perfume envenenado lhes abreviará o passo na
direção das trevas... Escreva!... Diga-lhes algo do martírio que espera, além
da morte, quantos quiseram ludibriar. a vida e matar as horas.
A mísera doente, sustentada por braços
amigos, foi conduzida a vasta câmara de repouso e, impressionados com tamanho
infortúnio, tentamos cumprir-lhe ri desejo e transmitir-lhe a palavra; contudo,
apesar do respeito que consagramos à mulher de nosso tempo, cremos que o nosso
êxito seria mais seguro se caminhássemos para um cemitério e assoprássemos a
mensagem para dentro de cada túmulo.
pelo
Espírito Irmão X - Do livro: Contos e Apólogos, Médium: Francisco Cândido
Xavier