Benvinda Fragoso
tornara-se amplamente conhecida pelas suas queixas constantes. Quem a ouvisse
na relação dos fatos comuns afirmaria, sem hesitar, que a infeliz arrematara
todos os desgostos do mundo.
Órfã de pai e mãe, vivia
à custa de salário modesto, numa fábrica de toalhas, onde fora admitida por
obséquio de amigos devotados. Todavia, se a existência era laboriosa, não
faltavam recursos para torná-la melhor. Não se casara, mas dois sobrinhos
inteligentes e generosos faziam-lhe companhia no ambiente doméstico. Os
genitores não lhe deixaram haveres em espécie, mas sempre legaram à filha o
patrimônio do lar, edificado ao preço de sublimes sacrifícios.
Benvinda rodeava-se de
oportunidades benditas, mas não sabia aproveitá-las. Cristalizara-se nas
queixas dolorosas, aniquilando as próprias energias. A mente enfermiça
desfigurava as sugestões mais belas da vida diária.
– Sou profundamente
infeliz – dizia a uma colega de trabalho –, vivo insulada, à maneira de animal
sem dono, ao léu da sorte. Morrer seria para mim uma felicidade. Diz-se que o
fim é sempre doloroso. Não será, porém, mais agradável alcançar o termo do
caminho no seio de tantas sombras e surpresas angustiosas?
– Não digas isso,
Benvinda – observava a companheira, com intimidade –, temos saúde, não nos
falta trabalho, teus sobrinhos gostam de ti. Não nos sintamos desditosas,
quando a oportunidade de serviço continua em nossas mãos.
Mal-humorada – explodia a
queixosa, exasperada:
– Que dizes? a existência
esmaga-me e desde a infância há sido para mim pesada carga de sofrimentos.
Referes-te aos sobrinhos, e que significam eles em meu caminho senão agravo de
preocupações? O mundo é cárcere tenebroso, inferno terrível, onde somos
convocados a ranger dentes.
Calava-se a colega, ante
o transbordamento de revolta insensata.
Na estação do frio,
aferrava-se Benvinda em lamentações amargosas; no verão, acusava a Natureza,
declarava-se incapaz de tolerar o calor ; e, se chovia, amaldiçoava as nuvens
generosas.
Dispondo de muitas horas
no ambiente doméstico, a infeliz nunca soube valorizar o santo aconchego das
paredes acolhedoras, onde os pais carinhosos lhe haviam dado o beijo da vida.
Enquanto os sobrinhos,
quase crianças, permaneciam no trabalho, Benvinda recorria às vizinhas e, mãos
cruzadas em sinal de preguiça, continuava incorrigível:
– Ah! Dona Guilhermina, a
vida vai-se tornando insuportável. Este mundo resume-se em miséria e desengano.
Até quando serei humilhada e perseguida pela má sorte?
– Oh! minha filha! –
respondia a interpelada, fixando gestos de mãe compadecida, por ocultar a
verdadeira expressão da personalidade habituada à maledicência – Deus é bom
Pai. Não desanime. Tenhamos confiança na Providência. Tudo passa neste mundo. A
fé pode transformar nossas dificuldades em motivos de vitória e alegria.
– Fé? – replicava
Benvinda, exaltada – estou descrente das orações. Deus nunca me atende. Quando
sonhava, há dez anos, a organização de um lar que fosse somente meu, rezei
pedindo a proteção do Céu e meu noivo desapareceu para desposar outra jovem,
mais tarde, longe de mim. Quando meu pai se decidiu à operação, supliquei à
Providência lhe poupasse a vida, atendendo a que eu era órfã de mãe, desde os
mais tenros anos, e sobreveio a infecção que o levou à sepultura. Quando minha
única irmã adoeceu, recorri de novo à confiança no Poder Celestial e Priscila
morreu, deixando-me os filhos por criar, através de obstáculos numerosos. Como
vê a senhora, minha crença não poderia resistir a choques tamanhos. Estou
sozinha, abandonada ; sou o cão anônimo, desprezado em desvãos do caminho.
Mas, como a assistência
espiritual da Esfera Superior se vale de todos os meios para socorrer
ignorantes e infelizes, a vizinha, não obstante a má-fé, constituía-se em
instrumento de consolação ao bafejo de amigos desvelados do Plano Superior e
replicava:
– Entretanto, quem sabe
todas as desilusões não resultaram em beneficio? O noivo, que a enchia de
esperança, talvez a envenenasse de desesperação, mais tarde; o genitor teria
evitado a operação cirúrgica, mas possivelmente se tornaria dementado,
percorrendo hospícios ou convertendo-se em palhaço da via pública; a irmã
ter-se-ia curado da pneumonia, mas, viúva muito jovem, talvez lhe amargurasse o
coração fraterno, cedendo a sugestões inferiores no caminho da vida.
Em vez de ponderar as
observações amigas, Benvinda retrucava:
– Não me conformo: para
mim a vida se resume no drama pungente que aniquila o espírito, ou na comédia
que revolta o coração.
A palestra continuava,
pontilhada de lamentos e acusações gratuitas ao mundo, até que os rapazelhos
chamavam à porta. A tia, que perdera tempo em lamúria improdutiva,
aproximava-se do fogão, apressada.
– Esta vida não me serve!
– dizia em voz alta, amedrontando os jovens – até quando serei escrava dos
outros, capacho do Destino? Maldita a hora em que nasci para ser tão
desgraçada.
Os sobrinhos miravam-na
entristecidos.
– Quando conseguirmos
melhor remuneração, titia – exclamava um deles, bondosamente –, havemos de
auxiliá-la, retirando-a da fábrica. Não é a senhora nossa verdadeira mãe pelo
espírito?
Benvinda, no entanto,
longe de comover-se com a observação carinhosa, multiplicava as impertinências.
– Não creio em ninguém –
bradava de cenho carregado –, quando vocês puderem, deixar-me-ão na primeira
esquina. Não pensam senão em diversões e más companhias. Crêem que resolverão
meus problemas com promessas?
Observando-lhe a feição
neurastênica, os rapazes esperavam a refeição, sisudamente calados. Terminada
esta, regressavam naturalmente à rua. O ambiente doméstico pesava. A lamentação
viciosa é força destrutiva.
Benvinda não reparava que
as amizades mais íntimas a deixavam sozinha no circulo das queixas
injustificadas. Ninguém estava disposto a ouvir-lhe as blasfêmias e críticas
impiedosas. As colegas de serviço evitavam-lhe a palestra desanimadora. As
vizinhas refugiavam-se em casa ao vê-la em disponibilidade no quintal invadido
de ervas rústicas. Os sobrinhos toleravam-na, desenvolvendo imenso esforço.
Nesse insulamento, a infeliz piorava sempre. Começou a queixar-se amargamente
do serviço e a acusar a administração da fábrica. Enquanto sua atitude se
limitava a circulo reduzido, nada aconteceu de extraordinário; todavia, quando
resolveu dirigir-se ao gerente para reclamações descabidas, recebeu a ordem
inflexível de demissão.
Enclausurada no
desespero, não tinha percepção das oportunidades que se desdobram no caminho de
todas as criaturas, nem compreendia que não era a única pessoa a lutar no
mundo. Crendo-se mártir, agravou a ociosidade mental e foi relegada a plano de
absoluto isolamento.
Nem amigos, nem trabalho,
nem colegas, nem sobrinhos.
Tudo fugiu, evitando-lhe
a atmosfera de padecimento voluntário.
Depois de perder a casa,
em venda desvantajosa, a fim de obter recurso à manutenção própria, passou ao
terreno da mendicância sórdida.
Foi nessa situação
escabrosa que a morte do corpo a compeliu a novos testemunhos.
Desencantada e abatida,
acordou na vida real em solidão mais dolorosa. Ninguém a esperava no pórtico de
revelações do Além-túmulo. Estava só, sem mão amiga.
E os sofrimentos de que
se julgara vítima na Terra?
Não esperava convertê-los
em títulos de ventura celestial? Descrera da Providência no mundo, entretanto,
no íntimo, sempre acreditara que haveria glorioso lugar para os desventurados e
famintos da experiência humana. Depois de longo tempo, em que se multiplicavam
provas ásperas, rogou ao Espírito de sua mãe que a esclarecesse na paisagem
nova. Tinha sede de explicações, ânsias de paz e fome de entendimento.
Depois da súplica
formulada com lágrimas angustiosas, sentiu a aproximação da desvelada genitora.
– Benvinda – murmurou a
terna mensageira, carinhosamente –, não te dirijas a Nosso Pai lamentando o
aprendizado em que te encontras. Toda queixa viciosa, minha filha, converte-se
em crítica injusta à Providência. Estás convicta de que sofreste na Terra;
entretanto, a verdade é que envenenaste os poços da Divina Misericórdia.
Fugiste às ocasiões de trabalho, desfiguraste o quadro sublime de realizações
que te aguardavam a boa-vontade nas estradas da luta humana. Hoje aprendes que
a lamentação é energia que dissolve o caráter e opera o insulamento da
criatura. Não conseguiste afeições em ninguém, não soubeste conquistar a
gratidão das criaturas, nem mesmo das coisas mais ínfimas do caminho. Sofre,
minha filha! A dor de agora é tua criação exclusiva. Não imputes a Deus falhas
que se verificaram por ti mesma.
– Oh! minha mãe! –
suplicou a infeliz – não poderei, porém, voltar e aprender novamente no mundo?
– Mais tarde. Por agora,
para que alcances alguma tranqüilidade, incorporar-te-ás à extensa falange
espiritual que auxilia os rebeldes e inconformados da luta humana. Reduziste a
existência a montão de queixas angustiosas, sem razão de ser. Trabalharás
agora, em espírito, ao lado daqueles que se fecham na teimosia quase
impenetrável, a fim de compreenderes o trabalho perdido...
E a queixosa trabalha até
agora, para abrir consciências endurecidas à compreensão das bênçãos divinas.
É por isso que muitos
homens, em momentos de repouso, são por vezes assaltados de idéias súbitas de
trabalhos inesperados. Criaturas e coisas enchem-lhes a visão interna,
requisitando atividade mais intensa. É que por aí, ao redor da mente em
descanso, começam a operar os irmãos de Benvinda, a fim de que a preguiça não
lhes aniquile a oportunidade, qual aconteceu a eles mesmos.
Espírito Humberto de
Campos/Francisco Cândido Xavier-Reportagens e Além Túmulo
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