terça-feira, 5 de julho de 2016

Consciência Ferida



CONSCIÊNCIA FERIDA
Meus amigos.
Deus nos ampare.
Depois de minha primeira visita, eis que torno à vossa casa, que funcionou para mim como um ninho de socorro e um tribunal de justiça.
Mulher padecente, trazia enlaçado a mim, qual se fora erva sufocante sobre árvore ferida, o espírito revoltado de meu próprio filho, cuja reencarnação impedi, num processo de aborto, no qual, por minha vez, perdi a existência.
Leviana e surda ao dever, adquiri compromissos com a maternidade, detestando-a.
E, por odiar o rebento que me palpitava no seio, procurei destruí-lo, usando venenosa beberagem que igualmente me furtou a vida corpórea.
Entretanto, se supunha que a morte fosse um ponto final à minha tragédia íntima, estava profundamente enganada, porque da poça de sangue a que se me reduziram os despojos, levantou-se, diante de mim, uma sombra acusadora.
A princípio, dessa nuvem amorfa nascia o choro incessante de uma criança recém-nata.
Tentando emudecer aqueles vagidos angustiosos, inutilmente rezei, usando orações decoradas na infância...
A nuvem, porém, jazia algemada ao meu próprio peito, através de laços cuja consistência ainda hoje não posso definir.
Abandonei, amedrontada, o meu aposento de mulher solteira e, esquecendo o culto do prazer a que me dedicara, procurei fugir, como se eu pudesse escapar de mim mesma.
Perdi a idéia de rumo...
Esqueci o calendário.
De minha memória desapareceu a noção de tempo.
Guardava a consciência de que a nuvem e eu corríamos sem cessar...
Houve, contudo, um momento em que a sombra se converteu na forma de um homem, que me perseguia, amaldiçoando:
- Desnaturada! Assassina!... Assassina!...
Anelei, assim, depois da morte, a vinda de outra morte que me afundasse no esquecimento.
Sentindo sede, debruçava-me no charco...
Torturada de fome, atirava-me aos detritos dos animais mortos no campo...
Ah! como será possível alguém adivinhar na Terra, enquanto a bênção do corpo físico é uma graça para o espírito que opera entre os homens, o tormento da consciência que edificou em si mesma o inferno que a envolve?
Minha existência passou a ser um suplício constante, terrível, inominável...
Chegou, todavia, a noite em que, à maneira de náufrago fatigado, vim dar à praia de vosso templo.
Mãos amigas apartaram-me da sombra agressiva a que me prendia, agoniada...
O alívio surgiu, por fim...
Entretanto, de alma conturbada, roguei esclarecimento para o meu desvario, embora conhecendo a minha culpa de pecadora penitente.
Recebi, de imediato, a resposta.
Um de vossos amigos - justamente aquele que me acompanha aqui, nesta noite, com fins educativos - submeteu- me a longa intervenção magnética e, fazendo com que minhas reminiscências recuassem no tempo, vi-me no Rio, menina malnascida, amparada por nobre mulher.
Para ser mais explícita, devo adiantar que essa criatura era Dona Mariana Carlota, a Condessa de Belmonte, aia do Imperador D. Pedro II, ainda criança.
Fui conduzida ao leito de pálida menina enferma, que morria pouco a pouco... Essa menina era a Princesa Dona Paula, que se afeiçoou a mim, com natural carinho.
Mas, por morte dela, eu ficava aos treze anos novamente desamparada.
No entanto, benfeitores do palácio estenderam-me braços generosos e fui mantida em São Cristóvão, na posição de criada humilde.
Aos vinte de idade, desposei um artesão da Casa Real.
Miguel era o nome de meu marido.
Duas filhas vieram ao nosso encontro.
A tentação dos prazeres carnais, porém, fascinava-me o espírito inferior.
Foi assim que aceitei a proposta indigna de um homem que me arrancou do lar para delituosa aventura.
Na tela de minhas recordações, surgiu então a noite do dia 4 de setembro de 1843, noite festiva que consagrou o casamento daquele que era o Imperador do Brasil.
Mulher moça, esposa e mãe, olvidei minhas obrigações e fui à procura de quem passara a ser o adversário de minha felicidade, a fim de receber-lhe a companhia, na rua Direita, junto ao Arco do Triunfo, com o qual se comemorava a grande cerimônia.
O Rio, nessa data, acolhia a nova imperatriz dos brasileiros.
É necessário me detenha nesses fatos - esclarece o benfeitor que me auxilia -, para marcar em nossa lição que o tempo não desaparece com o passado, continuando vivo em nosso presente, como estará também vivo para nós, no grande futuro...
Na noite a que me reporto, fui surpreendida por meu esposo, numa atitude de desconsideração aos compromissos que abraçara.
Miguel não resistiu.
Respondeu-me à loucura com o suicídio.
Transformou-se-me, então, a vida.
Dificuldades sobrevieram.
Enjeitei minhas filhas.
Partilhei o destino do aventureiro que, em seguida à minha irreflexão, me atirou ao resvaladouro das mulheres de ninguém...
Entretanto, a sombra de meu companheiro suicida nunca mais se apagou de meus passos.
Seguiu-me, não obstante desencarnado, agravou-me as provações e reuniu-se a mim, quando me desliguei do corpo de carne, num asilo de alienados mentais, depois de atribulada peregrinação pelo meretrício.
Escuros tempos assomaram-me à lembrança.
O caminho expiatório é um trilho de sofrimentos e reparações, e nós éramos dois condenados, respirando a escuridão de noite profunda...
Uma noite imensa, povoada de gemidos, de blasfêmias, de dor... até que renasci na carne, novamente em corpo de mulher. Amando-me e odiando-me ao mesmo tempo, Miguel intentara ser meu filho, contudo, arruinei-lhe os propósitos, recusando a maternidade menos feliz, retornando nós dois, desse modo, às trevas de onde vínhamos.
Agora, tudo de novo a recomeçar...
Um século, meus amigos...
Um século de um erro a outro erro...
Vede o martírio da mulher que em cem anos nada mais fez senão transviar-se por invigilância!
De 1943 até o ano findo, padecimentos novos me exacerbaram a luta, até que a prece e o amor me socorreram.
Venho, pois, compartilhar-vos a oração, a fim de que me renove, de modo a partir dignamente ao encontro do esposo que buscou reaproximar-se de mim, na condição de filho, para, de alguma sorte, ensaiarmos juntos a jornada reparadora.
Com a presente narrativa, não tenho outro intuito senão dizer-vos que a vida está continuando...
Que o trabalho não cessa...
Que o tempo não morre...
E que ai daqueles que caem, porque o soerguimento, muitas vezes, constitui fogo e fel no coração.
Sou um Espírito em reajuste.
Alguém que vos bate à porta, rogando amparo.
Pobre mulher que fala às outras, avisando-as quanto ao flagelo que nos aguarda, cada vez que o nosso coração foge aos princípios superiores da senda de elevação...
Expresso-me, assim, porque os homens, até certo ponto, são produto de nossa influência e domínio.
Os homens que nos partilham o leito, que se nutrem do pão que amassamos, que nos absorvem os pensamentos e que nos ouvem as palavras são nossos filhos e nossos irmãos, dependendo de nós para a vitória da Justiça e do Bem.
Que o Senhor nos dê consciência de nosso mandato! Que as companheiras presentes me ajudem com as suas preces, aproveitando igualmente a experiência aflitiva da mísera irmã que, em se perdendo, há tanto tempo, ainda não conseguiu recuperar-se...
Que Deus nos ilumine!...
Xavier, Francisco Cândido. Da obra: Instruções Psicofônicas. Ditado pelo Espírito Maria da Glória. Capítulo 29. Rio de Janeiro: FEB.
* * * Estude Kardec * * *

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