Acompanhando Félix, cujo
semblante passou a denotar funda preocupação, alcançamos espaçoso apartamento
do Flamengo, onde conheceríamos, de perto, os familiares de Marina.
A noite avançava.
Transpassando estreito
corredor, pisamos o recinto doméstico, surpreendendo, no limiar, dois homens
desencarnados, a debaterem, com descuidada chocarrice, escabrosos temas de
vampirismo.
Vale assinalar que, não
obstante pudéssemos fiscalizar-lhes os movimentos e ouvir-lhes a loquacidade
fescenina, nenhum dos dois lograva registrar-nos a presença. Prometiam
arruaças. Argumentavam, desabridos.
Malandros acalentados,
mas perigosos, conquanto invisíveis para aqueles junto dos quais se erguiam
por ameaça insuspeitada.
Por semelhantes
companhias, fácil apreciar os riscos a que se expunham os moradores daquele
ninho de cimento armado, a embutir-se na construção enorme, sem qualquer
defesa de espírito.
Entramos. Na sala
principal, um cavalheiro de traços finos, em cuja maneira de escarrapachar-se
se adivinhava, para logo, o dono da casa, lia um jornal vespertino com atenção.
Os atavios do ambiente,
apesar de modestos, denunciavam apurado gosto feminino. O mobiliário antigo de
linhas quase rudes suavizava-se ao efeito de ligeiros adornos.
Tufos de cravos
vermelhos, a se derramarem de vasos cristalinos, harmonizavam-se com as rosas
da mesma cor, habilmente desenhadas nas duas telas que pendiam das paredes,
revestidas de amarelo dourado. Mas, destoante e agressiva, uma esguia
garrafa, contendo uísque, empinava o gargalo sobre o crivo lirial que
completava a elegância da mesa nobre, deitando emanações alcoólicas que se
casavam ao hálito do amigo derramado no divã.
Félix encarou-o, manifestando
a expressão de quem se atormentava, piedosamente, ao vê-lo, e no-lo indicou:
— Temos aqui o irmão
Cláudio Nogueira, pai de Marina e tronco do lar.
Fisguei-o, de relance.
Figurou-se-me o hospedeiro involuntário um desses homens maduros que se demoram
na quadra dos quarenta e cinco janeiros, esgrimindo bravura contra os
desbarates do tempo. Rosto primorosamente tratado, em que as linhas firmes
repeliam a notícia vaga das rugas, cabelos penteados com distinção, unhas
polidas, pijama impecável. Os grandes olhos escuros e móveis pareciam
imanizados às letras, pesquisando motivos para trazer um sorriso irônico aos
lábios finos. Entre os dedos da mão que descansava à beira do sofá, o cigarro
fumegante, quase rente ao tripé anão, sobre o qual um cinzeiro repleto era
silenciosa advertência contra o abuso da nicotina.
Detínhamo-nos, curiosos,
na inspeção, quando sobreveio o inopinado.
Diante de nós, ambos os
desencarnados infelizes, que surpreendêramos à entrada, surgiram de repente,
abordaram Cláudio e agiram sem-cerimônia.
Um deles tateou-lhe um
dos ombros e gritou, insolente:
— Beber, meu caro, quero
beber!
A voz escarnecedora
agredia-nos a sensibilidade auditiva. Cláudio, porém, não lhe pescava o mínimo
som. Mantinha-se atento à leitura. Inalterável. Contudo, se não possuía
tímpanos físicos para qualificar a petição, trazia na cabeça a caixa acústica
da mente sintonizada com o apelante.
O assessor inconveniente
repetiu a solicitação, algumas vezes, na atitude do hipnotizador que insufla o
próprio desejo, reasseverando uma ordem.
O resultado não se fez
demorar. Vimos o paciente desviar-se do artigo político em que se entranhava.
Ele próprio não explicaria o súbito desinteresse de que se notava acometido
pelo editorial que lhe apresara a atenção.
Beber! Beber!...
Cláudio abrigou a
sugestão, convicto de que se inclinava para um trago de uísque exclusivamente
por si.
O pensamento se lhe
transmudou, rápido, como a usina cuja corrente se desloca de uma direção para
outra, por efeito da nova tomada de força.
Beber, beber!... e a sede
de aguardente se lhe articulou na idéia, ganhando forma. A mucosa pituitária
se lhe aguçou, como que mais fortemente impregnada do cheiro acre que vagueava
no ar.
O assistente malicioso
coçou-lhe brandamente os gorgomilos. O pai de Marina sentiu-se apoquentado.
Indefinível secura constringia-lhe a laringe. Ansiava tranqüilizar-se.
O amigo sagaz
percebeu-lhe a adesão tácita e colou-se a ele. De começo, a carícia leve;
depois da carícia agasalhada, o abraço envolvente; e depois do abraço de
profundidade, a associação recíproca.
Integraram-se ambos em
exótico sucesso de enxertia fluídica.
Em várias ocasiões,
estudara a passagem do Espírito exonerado do envoltório carnal pela matéria
espessa. Eu mesmo, quando me afazia, de novo, ao clima da Espiritualidade, após
a desencarnação última, analisava impressões ao transpor, maquinalmente,
obstáculos e barreiras terrestres, recolhendo, nos exercícios feitos, a
sensação de quem rompe nuvens de gases condensados.
Ali, no entanto,
produzia-se algo semelhante ao encaixe perfeito.
Cláudio-homem absorvia o
desencarnado, a gulsa de sapato que se ajusta ao pé. Fundiram-se os dois, como
se morassem eventualmente num só corpo. Altura idêntica. Volume igual.
Movimentos em-crônicos.
Identificação positiva.
Levantaram-se a um tempo
e giraram integralmente incorporados um ao outro, na área estreita,
arrebatando o delgado frasco.
Não conseguiria
especificar, de minha parte, a quem atribuir o impulso inicial de semelhante
gesto, se a Cláudio que admitia a instigação ou se ao obsessor que a propunha.
A talagada rolou através
da garganta, que se exprimia por dualidade singular. Ambos os dipsômanos
estalaram a língua de prazer, em ação simultânea.
Desmanchou-se a parelha e
Cláudio, desembaraçado, se dispunha a sentar, quando o outro colega, que se
mantinha a distância, investiu sobre ele e protestou: «eu também, eu também
quero!
Reavivou-se-lhe no ânimo
a sugestão que esmorecia..
Absolutamente passivo
diante da incitação que o assaltava, reconstituiu, mecanicamente, a impressão
de insaciedade.
Bastou isso e o vampiro,
sorridente, apossou-se dele, repetindo-se o fenômeno da conjugação completa.
Encarnado e desencarnado
a se justaporem. Duas peças conscientes, reunidas em sistema irrepreensível de
compensação mútua.
Abeirei-me de Cláudio
para avaliar, com imparcialidade, até onde sofreria ele, mentalmente, aquele
processo de fusão.
Para logo convenci-me de
que continuava livre, no íntimo. Não experimentava qualquer espécie de
tortura, a fim de render-se. Hospedava o outro, simplesmente, aceitava-lhe a
direção, entregava-se por deliberação própria. Nenhuma simbiose em que se
destacasse por vítima.
Associação implícita,
mistura natural.
Efetuava-se a ocorrência
na base da percussão.
Apelo e resposta. Cordas
afinadas no mesmo tom.
O desencarnado alvitrava,
o encarnado aplaudia.
Num deles, o pedido; no
outro, a concessão.
Condescendendo em
ilaquear os próprios sentidos, Cláudio acreditou-se insatisfeito e retrocedeu,
sorvendo mais um gole.
Não me furtei à conta
curiosa. Dois goles para três.
Novamente desimpedido, o
dono da casa estirou-se no divã e retomou o jornal.
Os amigos desencarnados
tornaram ao corredor de acesso, chasqueando, sarcásticos, e Neves, respeitoso,
consultou sobre responsabilidade.
Como situar o problema?
Se víramos Cláudio aparentemente reduzido à condição de um fantoche, como
proceder na aplicação da justiça? Se ao invés de bebedice, estivéssemos diante
de um caso criminal? Se a garrafa de uísque fosse arma determinada, para
insultar a vida de alguém, como decidir? A culpa seria de Cláudio que se
submetia ou dos obsessores que o comandavam?
O irmão Félix aclarou,
tranqüilo:
— Ora, Neves, você
precisa compreender que nos achamos à frente de pessoas bastante livres para
decidir e suficientemente lúcidas para raciocinar. No corpo físico ou agindo
fora do corpo físico, o Espírito é senhor da constituição de seus atributos.
Responsabilidade não é título variável. Tanto vale numa esfera, quanto em
outras. Cláudio e os companheiros, na cena que acompanhamos, são três
consciências na mesma faixa de escolha e manifestações conseqüentes.
Todos somos livres para
sugerir ou assimilar isso ou aquilo. Se você fosse instado a compartilhar um
roubo, decerto recusaria. E, na hipótese de abraçar a calamidade, em são
juízo, não conseguiria desculpar-se.
Interrompeu-se o mentor,
volvendo a refletir após momento rápido:
— Hipnose é tema
complexo, reclamando exames e reexames de todos os ingredientes morais que lhe
digam respeito. Alienação da vontade tem limites. Chamamentos campeiam em todos
os caminhos. Experiências são lições e todos somos aprendizes. Aproveitar a
convivência de um mestre ou seguir um malfeitor é deliberação nossa, cujos
resultados colheremos.
Verificando que o
orientador se dava pressa em ultimar os esclarecimentos sem mostrar o mínimo
propósito de afastar as entidades vadias que pesavam no ambiente, Neves voltou
à carga, no intuito louvável do aluno que aspira a complementar a lição.
Pediu vênia para repisar
o assunto na hora.
Recordou que, sob o teto
do genro, o irmão Félix se esmerava na defesa contra aquela casta de gente.
Amaro, o enfermeiro prestimoso, fora situado junto de Beatriz principalmente
para correr com intrometidos desencarnados. O aposento da filha tornara-se,
por isso, um refúgio. Ali, no entanto...
E perguntava pelo motivo
da direção diversa. Félix expressou no olhar a surpresa do professor que não
espera apontamento assim argucioso por parte do discípulo e explicou que a
situação era diferente.
A esposa de Nemésio
mantinha o hábito da oração. Imunizava-se espiritualmente por si.
Repelia, sem esforço,
quaisquer formas-pensamentos de sentido aviltante que lhe fossem arremessadas.
Além disso, estava enferma, em vésperas da desencarnação. Deixá-la à mercê de
criaturas insanas seria crueldade. Garantias concedidas a ela erguiam-se
justas.
— Mas... e Cláudio? —
insistiu Neves.
— Não merecerá,
porventura, fraterna demonstração de caridade, a fim de livrar-se de tão
temíveis obsessores?
Félix sorriu francamente
bem-humorado e explicou:
— «Temíveis obsessores» é
a definição que você dá. — E avançou: — Cláudio desfruta excelente saúde
física. Cérebro claro, raciocínio seguro. É inteligente, maduro, experimentado.
Não carrega inibições
corpóreas que o recomendem a cuidados especiais. Sabe o que quer.
Possui materialmente o
que deseja. Permanece no tipo de vida que procura. É natural que esteja
respirando a influência das companhias que julgue aceitáveis. Retém liberdade
ampla e valiosos recursos de instrução e discernimento para juntar-se aos
missionários do bem que operam entre os homens, assegurando edificação e felicidade
a si mesmo. Se elege para comensais da própria casa os companheiros que
acabamos de ver, é assunto dele. Enquanto nos arrastávamos, tolhidos pela
carne, não nos ocorreria a idéia de expulsar da residência alheia as pessoas
que não se harmonizassem conosco. Agora, vendo o mundo e as coisas do mundo, de
mais alto, não será cabível modificar semelhante modo de proceder.
O tema desdobrava-se,
assumindo aspectos novos.
Curioso, interferi:
— Mas, irmão Félix, é
importante convir que Cláudio, liberto, poderia ser mais digno...
— Isso é perfeitamente
lógico — confirmou. Ninguém nega.
— E por que não dissipar
de vez os laços que o prendem aos malandros que o exploram?
O alto raciocínio da
Espiritualidade superior jorrou, pronto:
— Cláudio certamente não
lhes empresta o conceito de vagabundos. Para ele, são sócios estimáveis, amigos
caros. Por outro lado, ainda não investigamos a causa da ligação entre eles
para cunhar opiniões extremadas. As circunstâncias podem ser saudáveis ou
enfermiças como as pessoas, e, para tratarmos um doente com segurança, há que
analisar as raízes do mal e confirmar os sintomas, aplicar medicação e estudar
efeitos. Aqui, vemos um problema pela rama. Quando terá nascido a comunhão do
trio? Os vínculos serão de agora ou de existências passadas? Nada legitimaria
um ato de violência da nossa parte, com o intuito de separá-los, a titulo de
socorro. Isso seria o mesmo que apartar os pais generosos dos filhos ingratos
ou os cônjuges nobres dos esposos ou das esposas de condição inferior, sob o
pretexto de assegurar limpeza e bondade nos processos da evolução. A responsabilidade
tem o tamanho do conhecimento. Não dispomos de meios precisos para impedir que
um amigo se onere em dívidas escabrosas ou se despenque em desatinos
deploráveis, conquanto nos seja lícito dispensar-lhe o auxílio possível, a fim
de que se acautele contra o perigo no tempo viável, sendo de notar-se que as
autoridades superiores da Espiritualidade chegam a suscitar medidas especiais
que impõem aflições e dores de importância aparente a determinadas pessoas, com
o objetivo de livrá-las da queda em desastres morais iminentes, quando mereçam
esse amparo de exceção. Na Terra, a exata justiça apenas cerceia as manifestações
de alguém, quando esse alguém compromete o equilíbrio e a segurança dos outros,
na área de responsabilidade que a vida lhe demarca, deixando a cada um a
regalia de agir como melhor lhe pareça. Adotaremos princípios que valham
menos, perante as normas que afiançam a harmonia entre os homens?
Rematando as elucidações
lapidares que entretecia, o irmão Féllx revestira-se de um halo brilhante.
Enlevados, não
encontrávamos em nós senão silêncio para significar-lhe admiração ante a sabedoria
e a simplicidade.
O instrutor fitava
Cláudio com simpatia, dando a entender que se dispunha a abraçá-lo
paternalmente, e, receando talvez que a oportunidade escapasse, Neves, humilde
e respeitoso, pediu se lhe relevasse a insistência; entretanto, solicitava
fosse aclarado, ainda, um ponto dos esclarecimentos em vista.
Diante do mentor
paciente, perguntou pelos promotores de guerra, entre os homens. Declarara
Félix que a justiça tacitamente cerceia as ações dos que ameaçam a estabilidade
coletiva. Como entender a existência de governantes transitórios, erigindo-se
na Terra em verdugos de nações?
Félix sintetizou,
reempregando algumas das palavras de que se utilizara:
— Dissemos «cercear» no
sentido de «corrigir», «restringir». Assinalamos igualmente que toda criatura
vive na área de responsabilidade que a lei lhe delimita. Compreendendo-se que a
responsabilidade de alguém se enquadra ao tamanho do conhecimento superior que
esse alguém já adquiriu, é fácil admitir que os compromissos da consciência
assumem as dimensões da autoridade que lhe foi atribuida. Uma pessoa com
grandes cabedais de autoridade pode elevar extensas comunidades às culminâncias
do progresso e do aprimoramento ou afundá-las em estagnação e decadência. Isso
na medida exata das atitudes que tome para o bem ou para o mal. Naturalmente,
governantes e administradores, em qualquer tempo, respondem pelo que fazem.
Cada qual dá conta dos recursos que lhe foram confiados e da região de
influência que recebeu, passando a colher, de modo automático, os bens ou os
males que haja semeado.
Víamos, porém, que Félix
não desejava estender-se em mais amplas considerações filosóficas.
Assentando no rosto a
expressão de quem nos pedia transferir para depois qualquer nova interrogação,
acercou-se de Cláudio, a envolvê-lo nas suaves irradiações do olhar brando e
percuciente.
Estabeleceu-se ligeira e
doce expectativa.
O benfeitor acusava-se
emocionado. Parecia agora mentalmente distanciado no tempo.
Acariciou a cabeleira
daquele homem, com quem Neves e eu, no fundo, não nos afináramos assim tanto,
semelhando-se médico piedoso, encorajando um doente menos simpático.
Aquele momento de
comoção, entretanto, foi rápido, quase imperceptível, porque o irmão Félix
retomou-nos a intimidade e comentou, despretensioso:
— Quem afirmará que
Cláudio amanhã não será um homem renovado para o bem, passando a educar os
companheiros que o deprimem? Por que atrair contra nós a repulsão dos três,
simplesmente porque se mostrem ignorantes e infelizes? E admitir-se-á,
porventura, que não venhamos a necessitar uns dos outros? Existem adubos que
lançam emanações extremamente desagradáveis; no entanto, asseguram a
fertilidade do solo, auxiliando a planta que, a seu turno, se dispõe a
auxiliar-nos.
O benfeitor esboçou o
gesto de quem encerrava a conversação e lembrou-nos, gentil, o trabalho em
andamento.
Trecho do livro Sexo e Destino, André Luiz (espírito),
psicografia de Chico Xavier
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